Genius Brasil
”A música nos uniu, a amizade nos manteve unidos”: Fraj e Arit conversam com Genius Brasil sobre novo disco
Lançado em agosto de 2020, Do Pó Ao Que Pode Ser Milagre é o trabalho colaborativo entre Fraj e Arit. Amigos e residentes de Lages, região serrana de Santa Catarina, eles conversaram com o Genius Brasil sobre o contexto de criação do disco, sobre os vínculos afetivos e as surpresas que a vida reserva.


Confira abaixo a entrevista completa.Genius Brasil: Vocês se conhecem e são amigos há anos. Como decidiram que еra o momento de trabalhar
juntos nessе projeto?

ARIT: Eu e o FRAJ nos conhecemos por causa da música, em um tempo onde ambos estávamos tendo suas primeiras experiências com arte. Tivemos um grupo juntos, que durou pouco, mas eu e ele sempre estávamos criando: eu mandando beats e ele escrevendo. Com o passar dos anos cada um foi trilhar seu caminho pessoal e musical separadamente. FRAJ mudou-se para Florianópolis e eu continuei em Lages [cidade serrana de Santa Catarina]. Ele trabalhou com outros artistas e eu também, e a vontade de fazer algo juntos permanecia. Chegamos a fazer inúmeras faixas, material pra mixtape, EP, singles, mas sempre acontecia algo como a impossibilidade de gravar, a perda total de HD ou distanciamento físico. Com ambos mais livres de projetos com outros artistas, decidimos quando o tempo pareceu mais favorável para fazer o disco. Iniciamos com idas esporádicas do FRAJ ao estúdio quando vinha pra Lages, sempre corrido pra eu e ele terminar as faixas. Reservando fins de semana e feriados finalizamos com ambos morando na mesma cidade.
FRAJ: Eu namorava uma menina, lá pelos meus quinze, dezesseis anos, e ela morava no mesmo condomínio que o Arit, eles estudavam na mesma escola. Lembro de nos cruzarmos na entrada do prédio, um encarando o outro. Eu de mãos dadas com a namoradinha, ele com sacolas de mercado e amarelas botas Timberland. Eu sabia, por ela e por outros conhecidos da escola, que ele fazia rap. E eu só ouvia rap: Subsolo, Shawlin, Black & Speed, Black Alien e Parteum dominavam meus fones. Devo dizer que as palavras me fascinam desde pequeno: lembro de olhar admirado para o formato das letras, dos garranchos às bem delineadas, e tentar desenhá-las no papel até compor uma frase, formar um substantivo qualquer, enfim dizer alguma coisa. Fora as histórias que meu pai me contava, como se resgatasse uma tradição oral e milenar, para revelar, em forma de fábula, o que permaneceu intacto frente ao implacável golpe do tempo. O que permanece é essencial, aquilo que é valioso independente das circunstâncias, essas sempre passageiras. Genealogia do imaginário: ditados populares, histórias, segredos da alma e da natureza. Nessa época, esse encanto começou a crescer simples e espontaneamente: uma redação na escola, uma mensagem, uma conversa, frases soltas no ar, no papel. Não cogitei fazer rap: comecei a fazer. Uma semana depois, deixei uma mensagem no Orkut do Arit (que não era Arit), falando de meu interesse em rap. Saímos pra conversar e desde então não paramos mais. Digo: aquela conversa, a primeira, não terminou e ecoa até hoje. Sentados num ponto de ônibus, compartilhamos experiências, esperanças, medos, sonhos, admiração um pelo outro. Ainda fazemos isso, uma década depois. A música nos uniu, a amizade nos manteve unidos. Lembro de ligar todos os dias para perguntar se ele estava produzindo, tamanha sede que aquilo me despertou. Tivemos um grupo que durou pouco, junto a outro amigo. Depois me mudei pra Florianópolis e trabalhei com outros artistas, assim como o Arit, que ficou por Lages, mas nunca deixamos de nos ver e fazer música. Arte e amizade são sinônimos entre nós: ambos frutos do amor. Entre idas e vindas, produzimos muitas coisas que se perderam, seja por um HD queimado, seja por não ter condições de gravar. Porém, o processo e a vontade estavam ali, emaranhados, a nutrir-se um do outro, como semente e solo. Ora, só é fértil o solo que oferece as condições para que a semente cresça, da mesma maneira que a semente sem o solo não passa de um grão oco. Assim, processo e vontade.

GB: O disco Do Pó Ao Que Pode Ser Milagre começou a ser produzido quando?
FRAJ: Então, voltei a morar em Lages, nisso minha avó faleceu. Era véspera de Natal. Arit foi ao velório dar um abraço em mim e em meus familiares e na madrugada saímos para ir à casa dele. Nesse dia percebi que a única coisa que restava na minha vida, independente das circunstâncias e das outras pessoas, algo que transcendia tudo isso e me ligava diretamente a algo maior, eterno, tendo como via direta e de mão única o meu coração, era a arte, a expressão, a palavra. Minha avó também morava naquele condomínio, onde conheci o Arit e minha primeira namorada. Retorno ao princípio. Tudo acontece no seu tempo: plantio, espera, colheita. Talvez o único antídoto possível frente o espanto da morte seja a criação, a qual recorremos naquela véspera de Natal. Gravamos a primeira faixa, a nona do disco, “Quando Alguém Partir”, com a fé e a devoção de quem ora. Após isso, voltei a morar em Florianópolis e passei a gravar quando
estava por Lages, em finais de semana e feriados. O disco levou basicamente quatorze meses para ser gravado. E por isso ele é simbólico para nós: contempla fatos importantíssimos em nossas vidas, como a morte de minha avó e o nascimento de Antônia, e representa o amadurecimento artístico e pessoal de cada um. Uma ruptura. Na semana que Antônia nasceu eu terminei de gravar a última faixa. Do Pó Ao Que Pode Ser Milagre representa a jornada
que cada um deve fazer em direção a si mesmo, para reintegrar-se ao todo, para harmonizar a tensão entre o que é e o que deve ser, pois o humano se situa ali, entre o deus e a besta, e só há uma via possível para isso: a do coração. Como em Mateus 6:19-21, “onde estiver teu tesouro, estará também teu coração”.
ARIT: O disco começou a ser produzido no dia 24 de dezembro de 2018 véspera de Natal, porém um dia fúnebre, avó do FRAJ havia falecido, incomunicável dizer sobre a morte e o vazio que ela integra. Saímos do enterro, e como palavras não confortam um coração quebrado em relação a morte de um ente querido, o que eu tinha a oferecer pra ele foi algo que sempre nos uniu em amizade, a música. Fomos ao estúdio e criamos a primeira faixa do disco, “Quando Alguém Partir”, a partir dessa faixa, após muito tempo sem criar algo, voltamos as atividades, e começamos a moldar o álbum. E fechamos o ciclo do disco, com a vida pulsante em nossos olhos, nasceu minha filha Antônia. Esse disco é resultado dos nossos acontecimentos pessoais, vida e morte, fim inicio, do pó ao que pode ser milagre!

GB: A pandemia, e consequente isolamento social, impactou de alguma forma a produção deste trabalho?
ARIT: As vozes foram gravadas e mixadas grande parte do álbum antes do Covid -19, a mixagem foi finalizada já com a pandemia, e a gente se reuniu para fazer ajustes finais, e encaminhamos para masterização, assinada por beiço da BLD pela Fábrica 612.

GB: Algumas canções têm um tom de virada de jogo, de mudança de comportamento, agora você “já não gasta a vida pondo band-aids”. A que você atribui essa virada, Fraj?
FRAJ: Nossa condição parece ser inerente à uma eterna busca. Não nascemos prontos pra nada: somos insuficientes, imperfeitos. A pergunta que passei a fazer foi: se necessariamente buscamos algo, o que necessariamente buscamos? As letras desse disco são fruto, em resumo, do espanto primordial que se tem ao perceber essa condição e, conforme isso, a necessidade de se portar com coragem e esperança diante da jornada que é a vida humana. Atribuo, portanto, a virada a esse espanto, que levou-me à uma ruptura, a partir da qual pude ver com mais clareza aquilo mesmo que sempre me cobrou atenção (e que sempre cobra): é preciso fazer-se, lapidar-se, buscar o e buscar-se no próprio caminho, caminho que só cabe a cada um e a mais ninguém percorrer. A cada dia basta seu fardo e a cada um basta sua jornada. Esse fazer-se, porém, não se dá no isolamento, num solipsismo atomizado, e sim na relação com os outros, consigo mesmo e com o mundo. Essas três coisas parecem-me indissociáveis. Enfim, é a preciosa frase de Píndaro (da qual Nietzsche se apropria), reluzindo como ouro para orientar nossos destinos: "torna-te quem tu és". O disco trata desse processo.

GB: Na faixa "Primeiro e último capítulo" quando você diz “Me tornei duplo Arit/Thiago um decifra as dores do outro”, a que se refere? É como um eu-lírico no seu fazer artístico?
ARIT: Você nasce confuso e sem poder de escolha sobre qualquer acontecimento, o que comer, o que vestir ou como ser chamado.
Quando você decide se dedicar a arte e escolhe seu vulgo, envolve todo o processo de afirmação de identidade pelo exercício, pelo encanto de criar, pelo processo, por resultados, é algo incessante e sempre único. A arte/terapia, confissão, sem que a realidade reduza a ótica da vida, pesando os ombros, traz a
ressignificação da realidade e do modo como se ver nesse âmbito. O que eu não veria com os olhos da realidade, me transborda em detalhes quando o exercício da criação acontece, quando me refiro a me tornar duplo, é sobre isso: as mazelas emocionais, os traumas, a fuga de algumas dores do Thiago, o ARIT revela, traz em evidência e sensibiliza, mostra o caminho e o diagnóstico. Arte tem essa função de autoconhecimento, molda o íntimo, dita caminhos, direcionamento, propósito.

GBNa faixa “Casos os Olhos Abram - Voz de Virgílio,” além da evidente menção a Virgílio, ao qual acreditamos ser o poeta clássico romano, você também cita, entre outros, a famosa frase “olhos de ressaca, oblíqua e dissimulada,” de ‘Dom Casmurro,’
de Machado de Assis. Há influência da linguagem da literatura na sua composição? Como se dá esse processo de criação?
FRAJ: Nessa faixa (A Voz de Virgílio), em específico, encarno Dante na Divina Comédia, atravessando o terceiro círculo do inferno, onde, além da nevasca e da chuva de granizo que
assola os condenados por gula (por isso digo “eu tenho fome”), deparo-me com Cérbero, o cão de três cabeças, gigantesco à minha frente, prestes a devorar-me por inteiro. Então surge
Virgílio, como o símbolo da virtude, da luz, da força, que me orienta a superar essas dificuldades. Na primeira (Caso os Olhos Abram), como você bem pontua, há referência ao romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. A influência da literatura não está só em minhas composições, antes está em minha vida. Sou um leitor apaixonado. A literatura abriu um horizonte de possibilidades para mim, sem os quais não enxergaria um palmo à frente. A trama das relações humanas, as narrativas que todos nós, personagens de si mesmos, vivenciamos, tudo isso é matéria prima da literatura. Por isso ela serve como um espelho. É o buraco da fechadura pelo qual podemos espiar um pouco do mistério da nossa condição humana. Sinto que antes da literatura eu vivia uma vida inconsciente, uma espécie de cegueira. Retrato muito isso no disco. Sócrates diz que uma vida não examinada não vale à
pena ser vivida e é nesse sentido que falo: do jeito que vivia não valia à pena viver. É chocante? Cruel? Nem por isso menos real. Foi a palavra escrita que me chacoalhou para depois me despertar. Esse despertar significa perceber como as coisas são mais complicadas, complexas e independentes do que eu acho ou quero, ou seja, o mundo não cabe no meu umbigo, as pessoas não são movidas pelas minhas expectativas e eu não sou a medida de todas as coisas. E outra: tenho mais semelhanças que diferenças em relação às outras pessoas, que tantas vezes julguei de maneira leviana, mesquinha e vã. Enfim, gera um espanto, que no fim é o espanto frente ao mistério da vida e que exige uma humildade ao tratá-la, pois como não posso viver nem saber tudo, leio, pergunto, observo, escuto. Assim, a literatura e a filosofia passaram a ocupar um espaço fundamental em minha vida. Um espaço misterioso e sagrado.
GB: A produção é calcada por várias camadas de melodias e ambientações. Como é esse processo de criação e confrontamento de todos esses sons com a ideia dos versos? Quais inspirações você busca para essa musicalidade?
ARIT: A dinâmica estabelecida por mim e pelo FRAJ foi algo bem livre, por ambos estarem fisicamente distantes no inicio do disco, eu produzia alguns instrumentais e deixava pra ele selecionar o que achava digno de escrever algo, a maioria das faixas foram construídas dessa forma, algumas outras juntos no estúdio, mas todas as letras foram criadas no estúdio. O confrontamento me parecia natural, sempre tive essa constante de mudança nas minhas obras, acho que a criação exige isso, mudar, trocar de pele, de formato. Passei por inúmeros subgêneros do rap nesses 13 anos de arte, Boom Bap, Lo- fi, Trap, Groove, do uso de
sample para criações inteiras tocadas. Me sinto confortável em experimentar. As inspirações foram os fatos da vida pessoal de ambos, sem muita influência musical externa, morando em cidades diferentes, nossas conversas eram sempre atualizações do que se passava na vida um do outro, no estúdio era dividido horas
de conversas sobre a vida, sobre arte, sobre a obra e depois labuta, gravação, regravação e finalização.

GB: Na faixa “Do pó ao que pode ser milagre”, que dá nome ao disco, é como se você estivesse dizendo coisas guardadas que lhe sufocavam e que precisavam ascender à superfície. Essa força com que as palavras saíram são como um desabafo?
FRAJ: A escrita é sempre, em alguma medida, confessional. Sendo assim, meu rosto está impresso em todas as letras do disco e essa música, que o intitula, tem um caráter purificatório, representa a emancipação do espírito que ao expurgar tudo aquilo que o oprime transcende as próprias circunstâncias. A purificação seria isso: separar o bom do ruim. Ela intitula o disco justamente por conter em si a mesma a força da transformação, da qual o disco, como já dito, é símbolo. Qual transformação? A que leva do pó ao que pode ser milagre. A purificação é parte do processo dessa transformação a que me refiro. A palavra ocupa o espaço vazio de sentido para lhe oferecer um rosto (ou vários), a música invade o silêncio como um feixe de luz invade um abismo incontornável. Por isso, sim, tinha muitas coisas guardadas, mas quando não as temos? A criação artística está mais para o mistério e para o inconsciente do que para a lógica e para consciência. Somos mágicos. Grande parte das coisas que nascem no processo de escrita são desconhecida para mim e as descubro por meio da criação, como se lhes tirasse com a mão o véu da face. Portanto, posso dizer, a partir dessa pergunta, que à medida em que fui me desenvolvendo como artista, mais latente e mais estreita ficou a relação entre criação e vida. Desse modo, posso dizer que sim, é um desabafo, o que pra mim é parte desse aspecto confessional, pois revelo através de imagens, diretas ou
indiretas, alegóricas ou literais, aquilo mesmo que carrego comigo (o que penso, sinto, vivo, etc). Ou seja, aquilo que necessariamente preciso dizer, já que se não disser, talvez não durma à noite ou não acorde amanhã.

GB: O próprio nome do disco traz em si uma ideia de renascimento, de luz no fim do túnel. No entanto, parecemos viver em um cenário de desconforto e desesperança diante dos acontecimentos atuais. Atividades antes rotineiras, como assistir ao telejornal, passaram a ser cada vez mais pesarosas. Ainda é possível ver e ansiar por um horizonte de beleza e esperança? Há algo que te faça acreditar nisso?
ARIT:Vejo que o cenário atual, a humanidade está revendo alguns conceitos básicos como afeto, presença, família, amigos, solidão e isolamento, e que é significativo em uma momento como esse. Uma sociedade em que viver é correr atrás da máquina, sem tempo para relações emocionais sólidas, tal Zygmunt Bauman escreve em "O amor líquido". O isolamento traz a percepção do valor do tempo, do tédio, do desespero de ser afetado por algo invisível que é onipresente, da incerteza quanto ao futuro, e o que é mais inquietante, em escala mundial. Não tenho esperança na humanidade numa perspectiva macro, pode ser criado a vacina, erradicado o vírus, sermos vitoriosos em avanços científicos quanto ao Covid, mas andaremos sempre com pressa, ansiosos diante do futuro, não valorizando o presente, vivenciando os males tal qual antes da pandemia. Já em escala micro, vejo esperança, acredito que o afeto, a saudade, o amor por um familiar ou amigo que não se pode dedicar carinho vai ser fortalecido, vai ser posto em evidência e importância. Tal qual a bíblia, depois da tempestade a bonança, a maré calma, o admirar das ondas, superar a turbulência e novamente retomar o tempo, os sonhos, os prazeres de uma comunhão afetiva, o renascer da esperança, viver.