Genius Brasil
“Trata-se muito mais de resgatar pessoas do que de incitar algo”: Diego Esteves fala sobre ‘Trap de Cria’
"Eu acho que todos que trabalham com hip-hop têm que amar o que fazem, e meu papel foi esse: registrar o que eu amo"


Diego Esteves, diretor, roteirista e co-produtor executivo do documentário "Trap de Cria"Com a explosão do gênero do trap no Brasil, vários artistas como Gxlden, Meno Tody, Borges, Daddy, dentre outros, trouxeram um novo modelo estético, intitulado como "trap de cria", que une a vivência das periferias das grandes metrópoles brasileiras à musicalidade que permeia o rap nacional. Além disso, a inspiração no estilo de Atlanta, no trap, funk e em todas as contradições e encontros que estes trazem, busca ressignificar o que tais artistas expressam em suas obras.

"Cria", pela própria definição léxica, é uma "pessoa ou animal de um lugar específico". Enquanto "TRAP" é um dispositivo ou armadilha para capturar pessoa ou animal. O "trap de cria", assim, seria "a armadilha perfeita para o animal perfeito", sendo essa armadilha representada pela música, como uma oportunidade de se rebelar contra esse dito "animal": o Estado.

Esse estilo retrata as vivências dos artistas do Rio de Janeiro, com letras que falam sobre sua experiência no crime, armas e drogas e o cotidiano das favelas cariocas de forma "espontânea" como afirma DaBabi 212, que canta, ainda, sobre como é ser negro e viver dentro de uma comunidade. Uma música da comunidade para a comunidade.
Pôster oficial do documentário

Em agosto, foi lançado o documentário homônimo sobre o estilo, dirigido por Diego Esteves e produzido pelo mesmo, junto de Carlos Ribeiro. O curta conta com as participações de DaBabi 212, Cinquenta, LisMc, Gxlden e Meno Tody, artistas independentes e referências no "trap de cria". No relato, o diretor apresenta os rappers e o microcosmo que os rodeia.

O diretor falou com Genius Brasil sobre sua ideia, bastidores do documentário, o cenário musical, a degradante situação imposta ao cinema nacional e projetos futuros. Confira a entrevista completa:[Genius Brasil] Ao longo de 2019, nós vimos o “Real Trap” ou “Trap de Cria” ganhando mais notoriedade dentro do rap nacional, sendo esse estilo popularizado por nomes como Meno Tody e os ex-integrantes do coletivo Young Fire Gang (YFG). No documentário, nós vemos um pouco da trajetória e estilo de artistas não tão conhecidos como DaBabi 212, Gxlden, LisMC e Cinquenta. Como se deu o contato e escolha desses artistas para o documentário? E quais foram os principais entraves durante as gravações?

[Diego Esteves] Tudo se inicia, principalmente, pelo fato de que o Gxlden é o primeiro a fazer esse tipo de Trap no RJ, lá por 2015, e os demais porque são grandes potências no cenário. Na ideia inicial tinham outros artistas convidados que não foram disponibilizados pelas gravadoras para fazer parte do documentário, chegando assim nesse time excelente que não deixou nada a desejar.
Não passamos grande dificuldades na maioria das gravações, somente com Gxlden, já que estava tendo operação e tivemos que aguardar um pouco na casa dele pra conseguirmos sair pra filmar. Mesmo assim, durante as filmagens é possível ouvir os tiros.

[GB] O “trap de cria” recebe muitas críticas de uma parcela do público por supostamente fazer “apologia ao tráfico”. Entretanto, as histórias contadas no documentário como as de Cinquenta e Lis, que buscam um "renascimento" através do trap após suas passagens pelo sistema penitenciário; Meno Tody, que melhorou sua condição financeira com sua música, e Dababi 212, cuja música o fez assinar com uma grande gravadora, nos mostram uma realidade diferente. Qual o papel de registrar essas histórias em um documentário? E o que você diria às pessoas que fazem essa associação com o tráfico?

[DE] Eu acho que todos que trabalham com hip-hop têm que amar o que fazem, e meu papel foi esse: registrar o que eu amo, através de artistas repletos de vivências únicas e fazer com que chegasse ao público um documentário muito mais sociocultural do que particularmente sobre música.
Eu diria a essas pessoas que não devemos negar o que nos é imposto pelo Estado. A favela é somente o reflexo da sociedade em que vivemos. Somente jovens de favela sabem o que é ser, todos os dias, alvo do Estado. A liberdade de expressão, expor a sua arte pela musica e dança, é uma das poucas formas que eles têm de poder escapar e incentivar vários outros amigos a sair da vida do crime. Trata-se muito mais de resgatar pessoas do que de incitar algo.

[GB] Há pouco tempo, várias notícias que buscavam incriminar e atacar o MC Cinquenta circularam nas redes sociais devido ao uso de armas de Airsoft na gravação de um clipe, sendo esse caso um exemplo dentre vários relacionados a artistas da periferia. Um documentário como o “TRAP DE CRIA” serve para desmitificar essa imagem negativa criada pela mídia? E como você enxerga uma mudança para esse cenário?

[DE] Serve sim. Porém, existe um abismo enorme relativamente ao respeito pelo trap/rap por parte da grande mídia. Somos negados e marginalizados por eles sem exceções e a mudança vai ocorrer, mas de uma forma bem lenta. Ainda precisamos evoluir em vários quesitos para adquirir esse respeito, isso na visão deles, claro.

[GB] Nós vemos que todos os MC’s entrevistados possuem um estilo de música baseado no trap e no funk que busca relatar o estilo de vida das favelas do Rio de Janeiro, sendo o “trap de cria” algo “muito regional”, nas palavras de Cinquenta. Você considera que esse estilo, ainda que originário do Rio de Janeiro, pode ser feito por pessoas de outros estados?
[DE] Sim, exatamente. Pode e é feito por várias pessoas, e muito bem feito, não é só no RJ que existem favelas.
O que, de fato, o documentário traz para o público alvo é o poder de, agora, conseguir distinguir, assim espero, quando o artista A ou B está cantando uma realidade que não é a dele ou quando está forçando algo que nunca viveu só porque agora popularizou.

[GB] Sabemos que, nesse período de isolamento social devido à pandemia do COVID-19, várias atividades foram paralisadas, inclusive com o fechamento de vários shoppings e cinemas no país. Quais foram os entraves enfrentados por vocês durante a produção e no lançamento do documentário devido à pandemia?

[DE] A maioria do material foi gravado antes do COVID-19, somente a entrevista com Meno Tody que já foi no inicio da pandemia. A nível do lançamento, todas as ações ocorreram como previsto.

[GB] Que outros temas dentro da música, do próprio "trap de cria",do rap nacional ou outro gêneros, você considera que dariam registros como esse? Tem alguma ideia de uma sequência? Já há alguma nova produção em mente, dentro ou fora da temática da música?

[DE] Eu sinceramente acho que deveríamos abordar mais sobre o tema das mulheres dentro do RAP. Não só de forma a dar mais visibilidade para elas mas sim dar voz sobre como é mil vezes mais difícil para elas conseguirem serem respeitadas. Não serem só chamadas nos feats pra fazer o refrão... Existe inúmeras questões que o rap, por ser machista, deixa de lado como se nada estivesse acontecendo. Acho, ainda, que têm que ser produzidos pelas cineastas, pela voz delas... Existem várias profissionais excelentes e aptas pra fazer um trabalho lindo.

A produtora do filme, a ASPA.TV, já iniciou a fase de pré produção da webserie " TRAP DE CRIA" que terá episódios de 10 minutos. Serão episódios individuais para cada artista e em breve anunciaremos a data do primeiro episódio e a lista dos confirmados. Outro documentário está na fase de pré produção, no meio do rap, não posso adiantar muito mas será, de fato, mais um marco pro cenário, desta vez no âmbito nacional.

[GB] O registro a partir de um mini-documentário ou documentário não é uma proposta muito comum aqui no Brasil, ainda mais com uma temática como essa voltada para o desenvolvimento de um gênero/subgênero musical. O que falta para vermos mais trabalhos como esse ou trabalhos mostrando a produção de um disco? Qual a importância deste tipo de produção para a música, o artista e, neste caso, para a própria cultura hip-hop?

[DE] Eu acho que a falta de produções é justificada por um simples motivo: falta de investimentos. Existem inúmeros tipos de comércio que podem investir no rap, que vão receber retorno. Porém, são, muitas das vezes, pessoas receosas em fazer um investimento sobre um tema que não conhecem... Quanto mais atingirmos a massa, mais poder de voz vamos ter. Aqueles que estão pensando fora da caixa, fora do seu ego, e estão compartilhando informação deveriam ser mais exaltados, respeitados e valorizados, essa é a importância do hip-hop: compartilhar informação, criar opções pra quem nunca teve nenhuma.O documentário "Trap de Cria" pode ser visto na íntegra pelo Youtube. Clique aqui