Zélia Duncan
“Hino” ao Inominável
[Movimento 1]

[Wagner Moura]
"Sou a favor da ditadura," disse ele
"Do pau de arara e da tortura," concluiu
"Mas o regime, mais do que ter torturado
Tinha que ter matado trinta mil"
E em contradita ao que afirmou, na caradura
Disse: "Não houve ditadura no país"
E no real o incrível, o inacreditável
Entrou que nem um pesadelo, infeliz
Ao som raivoso de uma voz inconfiável
Que diz e mente e se desmente e se desdiz

[Caio Prado | Marina Íris | ambos]
Disse que num quilombo, "os afrodescendentes
Pesavam sete arrobas" – e daí pra mais:
Que "não serviam nem pra procriar"
Como se fôssemos, nós negros, animais!
E ainda insiste que não é racista
E que racismo não existe no país

[Bruno Gagliasso]
Como é possível, como é aceitável
Que tal se diga e fique impune quem o diz?
Tamanha injúria não inocentável
Quem a julgou, que júri, que juiz?
[Thaline Karajá]
Disse que agora "o índio está evoluindo
Cada vez mais é um ser humano igual a nós
Mas isolado é como um bicho no zoológico"
E decretou e declarou de viva voz:
"Nem um centímetro a mais de terra indígena!
Que nela jaz muita riqueza pro país"
Se pronuncia assim o impronunciável
Tal qual o nome que tal "hino" nunca diz
Do inumano ser, o ser inominável
Do qual emanam mil pronunciamentos vis

[Zélia Duncan]
Disse que se tivesse um filho homossexual
Preferiria que o progênito "morresse"
Pr'uma mulher, disse que não a estupraria
Porque "você é feia, não merece"
E ainda disse que a mulher, "porque engravida"
"Deve ganhar menos que o homem" no país
Por tal conduta e atitude deplorável
Sempre o comparam com alguns quadrúpedes
Uma maldade, uma injustiça inaceitável
Tais animais são mais afáveis e gentis!

[Refrão: todos]
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
[Movimento 2]

[Lenine]
Chamou o tema ambiental de "importante
Só pra vegano que só come vegetal"
Chamou de "mentirosos" dados científicos
Do aumento do desmatamento florestal
Disse que "a Amazônia segue intocada
Praticamente preservada no país"
E assim negou e renegou o inegável
As evidências que a Ciência vê e diz
Da derrubada e da queimada comprovável
Pelas imagens de satélites

[DeXter | Ricardo Aleixo]
E proclamou: "Policial tem que matar
Tem que matar, senão não é policial
Matar com dez ou trinta tiros o bandido
Pois criminoso é um ser humano anormal
Matar uns quinze ou vinte e ser condecorado
Não processado" e condenado no país
Por essa fala inflexível, inflamável
Que só a morte, a violência e o mal bendiz
Por tal discurso de ódio, odiável
O que resolve são canhões, revólveres
[Pedro Luís]
"A minha especialidade é matar
Sou capitão do exército," assim grunhiu
E induziu o brasileiro a se armar
Que "todo mundo, pô, tem que comprar fuzil"
Pois "povo armado não será escravizado"
Numa cruzada pela morte no país
E num desprezo pela vida inolvidável
Que nem quando lotavam UTIs
E o número de mortos era inumerável
Disse: "E daí? Não sou coveiro." "E daí?"

[Professor Pasquale]
"Os livros são hoje 'um montão de amontoado'
De muita coisa escrita," veio a declarar
Tentou dizer "conclamo" e disse "eu canclomo"
Não sabe conjugar o verbo "concl-amar"
Clamou que "no Brasil tem professor demais"
Tal qual um imbecil pra imbecis

[José Miguel Wisnik]
Vigora agora o que não é ignorável:
Os ignorantes ora imperam no país
(O que era antes, ó pensantes, impensável)
Quem é essa gente que não sabe o que diz?

[Refrão: todos]
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

[Movimento 3]

[Chico César]
Chamou de "herói" um coronel torturador
E um capitão miliciano e assassino
Chamou de "escória" bolivianos, haitianos…
De "paraíba" e "pau de arara" o nordestino
E diz que "ser patrão aqui é uma desgraça"
E diz que "fome ninguém passa no país"

[Marina Íris]
Tal qual num filme de terror, inenarrável
Em que a verdade não importa nem se diz
Desenrolou-se, incontível, incontável
Um rol idiota de chacotas e pitis

[Marina Lima | Héloa | ambas]
Disse que mera "fantasia" era o vírus
E "histeria" a reação à pandemia
Que brasileiro "pula e nada no esgoto
Não pega nada," então também não pegaria
O que chamou de "gripezinha" e receitou (Sim!)
Sim, cloroquina, e não vacina, pro país
E assim sem ter que pôr à prova o improvável
Um ditador tampouco põe pingo nos is
E nem responde, falador irresponsável
Por todo ato ou toda fala pros Brasis

[Chico Brown]
E repetiu o mote "Deus, pátria e família"
Do integralismo e da Itália do fascismo
Colando ao lema uma suspeita "liberdade"
Tal qual tinha parodiado do nazismo
O slogan "Alemanha acima de tudo"
Pondo, ao invés, "Brasil" no nome do país
E qual num sonho horroroso, detestável
A gente viu sem crer o que não quer nem quis:
Comemorarem o que não é memorável
Como sinistras, tristes efemérides

[Luana Carvalho | Leci Brandão | ambas]
Já declarou: "Quem queira vir para o Brasil
Pra fazer sexo com mulher, fique à vontade
Nós não podemos promover turismo gay
Temos famílias," disse com moralidade
E já gritou um dia: "Toda minoria
Tem de curvar-se à maioria!" no país
E assim o incrível, o inacreditável
Se torna natural, quanto mais se rediz
E a intolerância, essa sim intolerável
Nessa figura dá chiliques mis

[Refrão: todos]
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

[Movimento 4]

[Preta Ferreira | Dora Morelenbaum | ambas]
Por vezes saem, caem, soam como fezes
Da sua boca cada som, cada sentença
É um nonsense, é um caô, umas fake news
É um libelo leviano ou uma ofensa
Porque mal pensa no que diz, porque mal pensa
"Não falo mais com a imprensa," um dia diz
Mas de fanáticos a horda lamentável
Que louva a volta à ditadura no país
A turba cega-surda surta, insuportável
E grita "mito!", "eu autorizo!" e pede "bis!"

[André Abujamra | Cida Moreira | ambos]
E disse: "merda, bosta, porra, putaria
Filho da puta, puta que pariu, caguei!"
E a cada internação tratando do intestino
E a cada termo grosso e um "Talquei?"
O cheiro podre da sua retórica
Escatológica se espalha no país
"Sou imorrível, incomível e imbrochável"
Já se gabou em sua tão característica
Linguagem baixo nível, reprovável
Esse boçal ignaro, rei de mimimis

[Vitor da Trindade | Hodari | ambos]
Mas nada disse de Moise Kabagambe
O jovem congolês que foi aqui linchado
Do caso Evaldo Rosa, preto, musicista
Com a família no automóvel baleado
Disse que a tropa "não matou ninguém," somente
"Foi um incidente" oitenta tiros de fuzis
"O exército é do povo e não foi responsável"
Falou o homem da gravata de fuzis
Que é bem provável ser-lhe a vida descartável
Sendo de negro ou de imigrante no país

[Jorge Du Peixe | Chico Chico | ambos]
Bradou que "o presidente já não cumprirá
Mais decisão" do magistrado do Supremo
Ao qual se dirigiu xingando: "Seu canalha!"
Mas acuado, recuou do tom extremo
E em nota disse: “Nunca tive intenção
De agredir quaisquer Poderes" do país
Falhou o golpe, mas safou-se o impeachável
Machão cagão de atos pusilânimes
O que talvez se ache algum herói da Marvel
Mas que tá mais pra algum bandido de gibis

[Refrão: todos]
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

[Movimento 5]

[Arrigo Barnabé | Péricles Cavalcanti | ambos]
E sugeriu pra poluição ambiental:
"É só fazer cocô, dia sim, dia não"
E pra quem sugeriu feijão e não fuzil:
"Querem comida? Então, dá tiro de feijão"
É sem preparo, sem noção, sem compostura
Sua postura, com o posto não condiz
No entanto "chega! […] vai agora [inominável]"
Cravou o maior poeta vivo, no país
E ecoou o coro "Fora, [inominável]!"
E o panelaço das janelas nas metrópoles!

[Paulinho Moska]
E numa live de golpista prometeu:
"Sem voto impresso não haverá eleição!"
E praguejou pra jornalistas: "Cala a boca!
Vocês são uma raça em extinção!"
E no seu tosco português, ele não pára:
Dispara sempre um disparate o que maldiz
Hoje um mal-dito dito dele é deletável
Pelo Insta, Face, YouTube e Twitter no país
Mas, para nós, mais do que um post, é enquadrável
O impostor que com o posto não condiz

[Monica Salmaso]
Disse que não aceitará o resultado
Se derrotado na eleição da nossa história
E: "Eu tenho três alternativas pro futuro:
Ou estar preso, ou ser morto ou a vitória"
Porque "somente Deus me tira da cadeira
De presidente" (Oh Deus proteja esse país!)
Tivéssemos um parlamento confiável
Sem x comparsas seus cupinchas, cúmplices
E seu impeachment seria inescapável
Com n inquéritos, pedidos, CPIs

[Vários]
Não há cortina de fumaça indevassável
Que encubra o crime desses tempos inci-vis
E tampe o sol que vem com o dia inadiÁvel
E brilha agora qual farol na noite gris
É a esperança que renasce onde Há véu
De um horizonte menos cinza e mais feliz
É a passagem muito além do instagramável
Do pesadelo à utopia por um triz
No instante crucial de liberdade instável
Pros democráticos de fato, equânimes
Com a missão difícil, mas realizável
De erguer das cinzas, como fênix, o país

[Refrão: todos]
E quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
E quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?